À volta da milenar “Festa da Circuncisão do Senhor e Oitava da Natividade”, celebrada pelos católicos a 1 de janeiro, desenvolveu-se, desde a Idade Média, sobretudo em Itália, o culto do “Prepúcio Sagrado”, tido como a única parte do corpo de Jesus Cristo que permaneceu na Terra, depois da sua ascensão ao Céu. Já no século XX, a Igreja reprimiu esse culto que resistiu até ao misterioso desaparecimento da “relíquia das relíquias”, precisamente no primeiro dia de 1983.
Federico Fellini talvez começasse este filme com o toque dos sinos da igreja a misturarem-se com litanias, sobre um “plano geral” de uma vila etrusca, toda ela de pedra, encavalitando-se no topo de planalto, banhada pela luz dourada de uma manhã fria do início dos anos sessenta do século passado. Seguir-se-ia o “plano conjunto”: crentes em procissão pelas ruas estreitas e empedradas da localidade de aparência medieval. Sacristãos de incensário na mão e um padre a dirigir os cânticos e orações que já se sobrepõem às badaladas. Vê-se uma mãe gorda a dar uma safanão discreto ao filho, igualmente arredondado, que não cessa de tirar macacos do nariz.
Contada, num registo mais martin-scorseseiano, a história iniciar-se-ia na mesma vila, Calcata. Só que durante a noite mal iluminada do último ou penúltimo dia de 1982. Dois vultos de homens a aproximarem-se da porta de uma casa. Em close-up, uma mão enluvada, segura a chave de parafusos para forçar a fechadura. Ouve-se um crack e a porta cede com um rangido. Num “plano relâmpago”, os feixes de luz de duas lanternas sugerem tratar-se de uma residência paroquial.
Depois, o “plano geral” de um quarto às escuras com um crucifixo na parede por cima da cabeceira da cama. Os homens, autênticas sombras, abrem gavetas e revolvem tudo. Um procura por baixo da cama. O outro atira lençóis e cobertores ao chão para espreitar sob o colchão.
“Vê no armário”, diz o primeiro. A câmara fixa-se numa caixa de sapatos iluminada pela lanterna dentro do roupeiro. Uma mão segura-a e abre-a. Lá dentro brilha tenuemente um pequeno relicário de prata com dois querubins segurando uma bolota.
“Está aqui. Vamos embora.”
Pier Paolo Pasolini teria provavelmente colocado, logo a abrir, um banho de sangue em pleno Saque de Roma, em maio de 1527. A verdade é que um filme em torno do “Prepúcio Sagrado” – a mais enigmática relíquia católica e a única parte do corpo de Cristo que permaneceu neste mundo – poderia iniciar-se de 2025 maneiras diferentes, prendendo o espetador do princípio ao fim.
Mas não sendo o presente narrador um cineasta genial, o melhor será rebobinar a fita até ao princípio. E esta situa-se na Judeia, exatamente oito dias depois do nascimento de Cristo, a 1 de janeiro de um impreciso ano 0 da Era Cristã. Na verdade, o nascimento de Cristo pode nem ter ocorrido no ano 0, mas sim no intervalo de 6 a.C. a 3 a.C, e o mais provável é não ter acontecido no inverno. Mas sigamos adiante, porque essa é outra história e não é para aqui chamada…
Ora, Jesus Cristo era judeu. E a tradição judaica estipula que os rapazes sejam circuncidados oito dias após o nascimento, altura em que também lhes é dado o nome.
“E quando os oito dias foram cumpridos, para circuncidar o menino, foi-lhe dado o nome de Jesus, que pelo anjo lhe fora posto antes de ser concebido” – Evangelho de São Lucas (2:21).
É por isso que, a partir do século VI, a cristandade começou a celebrar, em França, a Festa da Circuncisão de Cristo, no primeiro dia de janeiro. A data festiva ainda é comemorada por várias congregações anglicanas e pela maioria das igrejas luteranas, figurando também no calendário litúrgico da igreja ortodoxa e manteve-se no chamado Calendário Geral Romano até 1960.
Na Lenda Dourada, obra popular do século XIV sobre a vida dos santos, apresentam-se quatro razões que justificam essa celebração. A mais importante é “a efusão do sangue de Cristo”, lê-se no capítulo 13, intitulado A Circuncisão do Senhor.
“De facto, foi nessa data que, pela primeira vez, Ele começou a derramar seu sangue por nós, e mais tarde, quis derramá-lo outras vezes. Ele derramou seu sangue por nós em cinco diferentes ocasiões: a primeira na Circuncisão, que foi o começo de nossa Redenção”.
Na escritura apócrifa venerada pelos cristãos coptas do Egito, o Evangelho Árabe da Infância de Jesus, também se conta a história da circuncisão. Segundo essa narrativa, uma mulher idosa terá guardado o prepúcio da criança, conservando-a num unguento de óleo de nardo indiano, dentro numa caixa de alabastro.
Dezanove séculos depois, o autor português José Saramago descreve, no Evangelho Segundo Jesus Cristo, a cerimónia como se a ela tivesse assistido:
“No oitavo dia depois do nascimento, levou José o seu primogénito à sinagoga para ser circuncidado, e ali o sacerdote cortou destramente, com uma faca de pedra e a habilidade de um prático, o prepúcio da chorosa criança, cujo destino, do prepúcio falamos, não do menino, daria por si só um romance, contado a partir deste momento, em que não passa de um pálido anel de pele que apenas sangra (…)”.
O Prémio Nobel da Literatura de 1998 colide com a versão do Envagelho Árabe, segundo o qual a cerimónia terá ocorrido na “cova” onde Saramago diz que o menino nasceu, por causa do “problema da habitação que já era, naquela época uma dor de cabeça”, e não na sinagoga.
Mas deixemo-nos de polémicas fúteis em torno de detalhes. O que aqui importa é a história. Por isso, continuemos.
Durante a Idade Média, a Europa foi invadida por uma febre de relíquias, incluindo várias a reclamar serem “o verdadeiro” Prepúcio Sagrado. O facto que tornou aquela parte anatómica tão preciosa foi a sua raridade. Para já, em princípio, sendo humano, Cristo só poderia ter um prepúcio. Depois, segundo rezam as escrituras sagradas do Cristianismo, terá ascendido ao Céu após a morte – com todas as partes do seu corpo.
Ao contrário de outros santos, cujos restos mortais permaneceram na Terra (fornecendo matéria-prima abundante para a indústria das relíquias), do “Santo dos Santos”, como lhe chama a Lenda Dourada, só ficou a pequena dobra de duas camadas da pele e mucosa que cobriu a glande do recém-nascido durante uma semana.
Como relíquia de Jesus Cristo ficaram apenas os instrumentos de tortura que o fizeram sofrer nas últimas horas, levando-o a gritar “Meu Deus, Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Mateus 27:46), e ainda uns pedaços da madeira do crucifixo, os cravos que o pregaram na cruz, o sudário e pouco mais.
Não é, por isso, de estranhar que tenham aparecido, durante a Idade Média, várias cidades a reivindicar a posse de tão sagrada relíquia. O jornalista David Farley, autor do livro An Irreverent Curiosity: In Search of the Church’s Strangest Relic in Italy’s Oddest Town, além de documentários e artigos sobre o tema, consegue enumerar até 18 prepúcios de Cristo em várias cidades europeias durante a (falsamente) chamada Idade das Trevas – desde Santiago de Compostela, passando por Antuérpia, Besançon e Roma.
É aliás, neste último prepúcio que nos vamos reter, por ser considerado pela Igreja o mais legítimo. É na atual capital italiana que se encontra o primeiro registo escrito, datado de de 25 de dezembro do ano 800 – o dia em que Carlos Magno foi coroado, em Aachen, Alemanha (Aix-la-Chapelle, em francês), pelo Papa Leão II, como Imperador do Sacro Império Romano-Germânico.
Por ocasião dessa cerimónia, o monarca ofereceu a “relíquia das relíquias” ao Pontífice, declarando tê-la recebido diretamente das mãos de um anjo, enquanto rezava no Sagrado Sepulcro, na Terra Santa. Mas na sua investigação, David Farley encontrou uma explicação mais terrena: Carlos Magno obtivera-a como presente de casamento da imperatriz bizantina Irene de Atenas.
Acreditando ou não na dádiva angelical, o Papa recebeu a oferta com agrado, cuja autenticidade haveria de ser confirmada por uma santa sueca. E mandou guardá-la no Sancta Sanctorum (local onde se armazenam as relíquias do Vaticano), junto à Basílica de São João de Latrão. É por essa altura que começa, também na cidade papal o culto do Prepúcio Sagrado.
O prepúcio ficou armazenado durante mais de 700 anos, junto de outras relíquias papais. Até ao Saque de Roma, a 6 de maio de 1527, pelas tropas alemãs e espanholas do Imperador Carlos V, que entre muitos outros tesouros roubaram também esse.
É aqui que entra a pequena localidade etrusca. Reza a lenda que terá sido um mercenário alemão, chamado Lanzichenecco (possivelmente, uma corruptela italiana da expressão Landsknecht – soldado), a ficar em posse do prepúcio.
Dirigindo-se para norte pela Via Flamínia, acabou por ser capturado por inimigos e foi levado para as masmorras do castelo de Calcata. Aí, o prisioneiro terá escondido o seu valioso despojo numa cavidade escavada no tufo calcário que pavimentava a sua cela.
Após a libertação (não se sabe quando), o soldado germânico regressou a Roma. E deixou-se ficar durante 20 anos, até à sua morte. Chamado o padre para lhe ouvir a última confissão e dar-lhe a extrema unção, Lanzichenecco revelou o seu segredo ao sacerdote.
Calcata tornou-se rapidamente famosa. Atraiu peregrinos de todo o lado. Todos eles ansiosos para poderem contemplar o prepúcio mumificado do Menino Jesus sobre o altar, o que só acontecia uma vez por ano, a 1 de janeiro, após uma procissão em que a relíquia era levada pela terra. Muitos milagres terão ocorrido, desde então, em Calcata – entre eles, tempestades estranhas e nevoeiros perfumados. Durante séculos, a Igreja não só aprovou o culto, garantindo a autenticidade da relíquia, como concedia dez anos de indulgência aos peregrinos. Mas a instituição religiosa haveria de mudar de posição. A tradição terminou formalmente nos anos sessenta do século XX, após décadas de ameaças de excomunhão. Contudo, a devoção do povo de Calcata conseguiu mantê-la viva até 1983.
Na primeira manhã desse ano, a população juntava-se para mais uma procissão, quando o pároco local se dirigiu à comunidade com uma notícia devastadora:
“Este ano, a sagrada relíquia não será exposta à devoção dos crentes. Desapareceu. Ladrões sacrílegos levaram-na de minha casa.”
As pessoas ficaram em estado de choque. Que raio fazia uma relíquia tão sagrada em casa do padre, quando devia era estar na igreja? Ainda por cima, guardada no roupeiro e metida numa caixa de sapatos. É um mistério que até hoje ainda ninguém conseguiu explicar. Nem D. Dario, o próprio pároco.
Para as pessoas de Calcata, aquilo não era um resto humano qualquer, com a aparência de um grão-de-bico avermelhado. Tratava-se, isso sim, do pedaço da pele da pontinha do pénis de Jesus Cristo, o Salvador, como diz David Farley, num artigo publicado na Slate.
Na igreja da terra existem agora apenas dois vestígios daquela que já foi considerada a maior relíquia da Cristandade. Há uma inscrição em latim, numa placa de mármore verde, indicado que ali se encontra(va) o “sagradíssimo Prepúcio de Nosso Senhor Jesus Cristo”. E, junto ao altar, está encostada uma bandeira, com as representações de dois santos e outros tantos anjos, que usam algo parecido com uma coroa. Sobre uma faixa lê-se em latim: “Os sinais da circuncisão de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
O desaparecimento da relíquia tem dado azo às mais estranhas teorias da conspiração. Há quem suspeite que foi o próprio padre quem a fez desaparecer para vender o relicário de prata com o respetivo conteúdo por bom dinheiro no florescente mercado negro das relíquias católicas. Outros alegam que foram satanistas ou neonazis a roubá-la para usarem o prepúcio do filho de Deus em rituais macabros. E há mesmo quem avente a hipótese de o Vaticano ter estado metido até ao pescoço neste caso. Na hierarquia houve sempre quem não visse com bons olhos tanta devoção a uma parte tão íntima do “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1:29).
O bibliotecário do Vaticano Leão Alácio (1586-1669) terá mesmo negado a existência terrena do Prepúcio Sagrado após a morte de Cristo, num ensaio nunca publicado, mas mencionado na Bibliotheca Graeca de Johann Albert Fabricius (1668-1736) e referido em Crimes of Christianity, dos livre-pensadores britânicos do século XIX George William Foote e Joseph Mazzini Wheeler.
O escrito, intitulado De Praeputio Domini Nostri Jesu Christi Diatriba (Discurso sobre o Prepúcio de Nosso Senhor Jesus Cristo), aventa uma teoria mirabolante: a relíquia terá ido para o Céu juntamente com Cristo, tendo-se transformado nos anéis de Saturno.
Pode presumir-se que existiram períodos em que o Vaticano tentou travar um culto popular, que contava com o apoio de elementos do clero. Mas a grande ofensiva só ocorreria a 3 de agosto de 1900, depois de em França ter sido encontrado um relicário com o que os franceses reclamavam ser o genuíno e o único prepúcio de Jesus Cristo.
O Santo Ofício, em Roma, para quem já bastava o frenesim à volta de Calcata, não esteve com meias medidas: comunicou aos crentes a excomunhão de todos os católicos que ousassem venerar o prepúcio do Menino Jesus e aqueles que escrevessem sobre o assunto. É que, no seu argumentário, tal encorajaria a irreverência e a curiosidade, como como refere James Bentley, no livro, Restless Bones: Story of Relics.
Segundo David Farley, 54 anos depois, um monge quis incluir Calcata num guia de peregrinações. O Vaticano não só rejeitou a proposta como agravou a pena para “excomunhão maior”. Trata-se de um castigo normalmente aplicado a heresias e pecados escandalosos, que proíbe o crente de receber sacramentos, de assistir a serviços religiosos, tirando-lhe qualquer dignidade religiosa, incluindo a sepultura eclesiástica e até o relacionamento com os restantes fiéis.
Em 1960, um decreto do Papa João XXIII determinou uma revisão abrangente do Calendário Geral Romano, que incluiu a mudança de nome da festividade de “Festa da Circuncisão do Senhor e Oitava da Natividade” para apenas “Oitava da Natividade”.
Entretanto, Calcata foi transferida para outro lugar devido ao risco sísmico. O idílico lugar antigo empoleirado no topo do planalto etrusco, onde se continuou a realizar a festa, foi seguidamente ocupado por comunidades de hippies e gente da cidade, incluindo jornalistas de Roma que começaram a levar o curioso culto ali praticado para as páginas dos jornais italianos e internacionais. Deu-se assim um pretexto ao Vaticano para ter mais benefícios no desaparecimento de um relicário de prata com dois querubins a segurar uma bolota com o respetivo conteúdo do que quaisquer satanistas, neonazis ou até párocos locais.
Nota de fecho: Porque as histórias também alimentam a alma, partilho esta convosco, ainda que fique um pouco de fora do âmbito do site. Publiquei-a originalmente na Revista Visão, faz agora 9 anos. Agora, tem hipelinks e subtítulos atualizados.
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